Eu gosto de Slam Dunk
Ou como um mangá de delinquente me fez querer fazer uma cirurgia com anestesia geral
Slam Dunk é um mangá de basquete dos anos 90, escrito pelo Takehiko Inoue, mais conhecido por Vagabond. Nele os personagens não têm poderzinhos nem cabelo colorido*, te levando a apreciar a partida como se fosse um jogo de verdade. A bem da verdade, o máximo que se vê nesse sentido é o poder do protagonista em puxar a camisa do pivô do outro time sem receber falta.
Mas, como já adiantei, eu gosto de Slam Dunk, ou Slamas. Às vezes ele deixa de ser uma história sobre basquete e se torna um mangá de porradaria de delinquentes. Às vezes ele demonstra pinceladas dum romance e até consegue te fazer chorar se você se deixar empolgar com as partidas, especialmente porque nunca da pra saber se o Shohoku, colégio dos protagonistas, vai conseguir levar a vitória. O peixão que me perdoe, mas nunca torci pro Santos como torci pro Shohoku na partida contra o Kainan.
Sempre fui bastante alto. Acho que tenho 1,97 (depois de um tempo parei de me preocupar com o último digito) e até joguei basquete no colégio durante o fundamental. Mas uma combinação de bronquite, sinusite, desvio no septo e, o mais grave, ser um gordinho otaku, conseguiu me afastar do esporte. Eu não era um jogador muito bom (com essa combinação de fatores, durava incríveis cinco minutos se desse sorte), mas gostava de jogar, só não gostavam de jogar comigo no mesmo time.
Isso me causou um ciclo vicioso relativamente comum pros nerdolas da minha geração; Não praticava esporte porque o ambiente era inóspito e sempre era escolhido por último. Por não praticar esporte, me tornava mais excluído, mais sedentário e mais inepto para ser a escolha do time na educação física. Mas, em que pese isso, não tinha jeito: cresci até demais. E, inevitavelmente, quando me perguntavam se eu jogava basquete negava com uma risada contraida. Na faculdade, fiz vista grossa pro time e, no dia a dia, existia uma ideia enraizada na minha cabeça de que esporte não era pra mim.
No quarto ano da graduação, na paradinha diária na banca de jornal da Maria Antônia, reparei no primeiro volume de Slam Dunk dando sopa. Gostava de Vagabond, então decidi tentar outro trabalho do autor. Imediatamente me apaixonei. Acho que, por minha experiência pessoal, nunca aturei mangás de esporte até então porque o protagonista sempre é um talento nato, como o tapado do Tsubasa em Super Campeões. O Sakuragi, por outro lado, é um incompetente. Não sabe o mínimo do mínimo, erra passe, faz drible duplo, anda com a bola, enfim, tudo que eu me via fazendo uns bons anos antes.
Mas foram esses defeitos do protagonista que me cativaram o bastante para continuar lendo e me deram a vontade de voltar a jogar basquete depois de mais de uma década parado. E se agora eu sabia, na teoria, como jogar basquete, percebia que quando o assunto era preparação física, visão de jogo e habilidade de arremesso eu parecia mais ainda com o Sakuragi. Perder de 21 a 0 era uma realidade que eu e os dois azarados que decidiam me acompanhar frequentemente vivenciavam.
Vontades a parte, esperar meia hora por uma vaga na quadra do CERET pra perder em cinco minutos não anima ninguém. Dei a sorte de conhecer pouco antes da pandemia o Luís, um amigo de um amigo que queria voltar a jogar e sugeriu treinar comigo. Meus amigos sabiam jogar, mas ele viria a ser o único que quis mesmo me ensinar como usar a altura, que até então era minha única arma em campo. Passada a pandemia, durante a qual perdi o pouco progresso que tinha feito, o reencontrei e retomamos a ideia de jogar basquete, mas sabíamos que iriamos apanhar sem dó no CERET. Por conta disso, começamos a praticar com meia dúzia de brothers na quadra do meu então prédio. Se o problema do peso já havia passado e a desenvoltura com o jogo melhorava aos poucos, minha estamina ainda era terrível e não venceria uma senhora fumante de 60 anos numa corrida.
Ser mais driblado que o goleiro do Santos em 2023 me fez querer ir atrás dum problema antigo: o septo torto. A maioria das pessoas com desvio de septo tem o desvio só pra um dos lados, mas o meu caso era bem mais severo: A mãe natureza, tentando criar uma arquitetura rococó da minha estrutura facial, fez a façanha de me dar um septo em forma de S. Nenhuma das narinas funcionava direito.
Com quase um ano de exames preparatórios, que envolveram correr numa esteira com eletrodos alá Dragon Ball e ter uma câmera enfiada em cada narina, entrei no hospital São Cristóvão pra cirurgia. Eu não calava a boca na mesa de operação, mas a anestesia geral me deu um gostoso apagão de seis horas. Quando acordei e senti pela primeira vez na vida o ar preencher meu sistema respiratório por completo percebi que tinha sido um sucesso, imediatamente meu nariz começou a sangrar igual a um personagem de anime.
Obedecendo ao doutor, tinha de ficar um mês sem atividades físicas, com uma atadura no nariz pra conter o sangramento e um batalhão de remédios. Nada de basquete nesse tempo. Além disso, detalhe importante, estava pra casar e isso consome seu tempo e energia mais que qualquer esporte.
Contudo, uma situação excepcional surgiu: O filme Slam Dunk the first (um nome terrível, dado o fato que a película adapta o último jogo do mangá) estreava no Brasil.
Me planejei pra ir com um amigo, Gabriel, no reserva cultural. Fui informado que estaria em cartaz na sexta feira, 11 de agosto, e, quando chegamos lá, descobrimos que o filme simplesmente não estava mais e, supostamente, só voltaria no próximo fim de semana.
Na semana seguinte, faltando três semanas pro casamento, tínhamos planos de ir contratar o chope pra festa e, em seguida, cinema. Chegamos na empresa, eu, minha então noiva Carol (agora esposa!) e uma madrinha, recebidos por um funcionário com uma barriga que justificava seu cargo como funcionário duma distribuidora de chope, bem como o manso cão de estimação local, o chopinho, que nos foi indicado ser um anjinho de quatro patas.
Enquanto provava o chope na parte de trás, descobri que o chopinho tinha mordido a mão da noiva. Não somente o funcionário tentou botar a culpa nela, como só passou um álcool fraquíssimo na ferida que não mataria bactéria nenhuma nem adiantaria pra compor as bebidas que serviam. Saímos correndo pra passar numa farmácia e ir pra casa. Sem chope, sem filme e com uma pequena cicatriz na mão da minha noiva, imaginei que teria de desistir de assistir o Slamas no cinema. Sentia o basquete escapando de mim mais uma vez.
Então, o perfil do Reserva Cultural me mandou uma mensagem, dizendo que o filme teria como última sessão a quarta feira, 23 de agosto. Minutos depois mandaram uma segunda mensagem, simpática, dizendo “Opa! Erramos o arremesso, o filme continua em cartaz até dia 26!”. Tal qual Pedro andando sobre as águas confiei nesse chamado e convoquei a Carol, e um colega de escola pra finalmente assistirmos o filme. Encontraríamos o Gabriel (o amigo que havia vindo comigo na primeira tentativa) lá.
Como nada é fácil, no vagão do metrô constatamos um homem de boné totalmente adulterado xingando o nada, em nossa direção. Já que a física não permite que dois corpos ocupem o mesmo espaço simultaneamente, e já que o metrô comprova isso melhor que qualquer teorema de física, ficamos parados na multidão, torcendo que ele seguisse com a vida.
No Brás tivemos a primeira intercalação. Dando risada de alguma piada fomos mal interpretados como se ríssemos daquela figura espúria. Imediatamente decidiu xingar meu colega, ao que conseguimos desconversar e seguir com a vida. Já estávamos em cima da hora e tínhamos de apertar o passo. Só conseguia pensar nisso, até que, ao descermos na República, nosso companheiro de viagem se esgueirou entre os demais passageiros e acertou um soco no peito do meu colega. Imediatamente me postei entre os dois, mas acabamos sendo separados pela porta do metrô, que levou o agressor embora. Faltavam quinze minutos, três estações e uma baldeação para chegarmos na sessão de Slam Dunk.
Acalmados os ânimos e finalmente na estação brigadeiro, me restava menos de cinco minutos pra chegar no filme. A Carol decidiu ir ao shopping e eu, longe dos olhos vigilantes da mulher, ignorei a recomendação médica e corri. Sentia o cheiro de sangue no nariz, mas corri e cheguei a tempo da sessão começar. Valeu cada porcentagem de chance de estourar a sutura interna do nariz e foi um dos melhores filmes que vi ano passado.
Continuo gostando de Slam Dunk, agora casado, com o septo alinhado e, finalmente, apto a ganhar uma partida de 21 contra outros jovens adultos de capacidade atlética questionável. Aprendi como marcar uma tabela, a cobrar lance livre e fazer pick’n’roll. Pulo até um pouquinho mais alto do que pulava antes, mas ainda sou frustrado por não ter ideia de como fazer uma enterrada (algo que me deixa mais distante ainda do Sakuragi, cuja única habilidade no começo da série é justamente essa).
No fim das contas, gostar de Slam Dunk me fez muito mais feliz do que Slam Dunk me fez. Me trouxe a vontade de cuidar do meu corpo, entusiasmo por atividade física e amizades que não teriam florescido da mesma maneira sem essa obra maravilhosa. Agora, sempre que me perguntam se, com essa altura toda, jogo basquete, respondo com um riso tímido que sim.